terça-feira, 30 de julho de 2013

Sócrates e a linguagem escrita


Para aplacar a cautela que se tem com ebooks, redes sociais, blogs e outros meios de registro digital do conhecimento, não é correto invocar Sócrates e sua conhecida rejeição a linguagem escrita.

Por Cristiano de Jesus

Quando o assunto é o efeito na capacidade cognitiva das pessoas frente ao convívio com uma corrente incessante e copiosa de informações proporcionado por meios de comunicação de massa cada vez mais eficientes, com frequência há muita gente entusiasmada com a tecnologia da informação que lança o argumento que versa sobre nossa inaptidão em aceitar o novo, em conformar-se com um novo paradigma.

É muito comum a evocação de Sócrates, o grande filósofo grego que era contra a linguagem escrita. O mestre de Platão passou a ser um ícone, a personificação mais contundente da ideia de que a resistência a mudanças é algo inerente à natureza humana.

Entretanto, há um grande equívoco em aproximar o filósofo ateniense a essa querela. Sócrates era remanescente de uma antiga cultura em que prevalece a oralidade no trato com o conhecimento. A fonte mais interessante para entender essa tradição são os poemas homéricos além do vasto material produzido por pesquisadores que se dedicam ao estudo desses versos.

Nada é conclusivo sobre a história da composição da Ilíada e da Odisseia mas sabe-se que a linguagem usada para escrever os poemas nunca fora falada. Trata-se do grego jônico arcaico com certa influência ainda de dialetos sendo o principal deles o eólico. Especula-se que Homero era cego e analfabeto assim como analfabetos eram também os diversos aedos (poetas) que viviam de recitar as aventuras de Aquiles, Heitor e Ulisses.

Certas inconsistências presentes nos poemas e a estrutura de sua composição sugerem que o autor os conceberam para que ao serem recitados houvesse certa margem para criação e improvisação. Essa tradição, contudo, institui a produção do conhecimento por meio da oralidade a partir de um saber tronco. Assim ocorre em todas os recantos da cultura da antiga Grécia – no teatro, na política e, como não poderia ser diferente, na filosofia, que na época não se distinguia do que hoje chamamos de ciência.

Sócrates não era um conservador, um eremita que resistia ao progresso. A posição de nosso filósofo, na verdade, residia na constatação de que a linguagem escrita não proporciona a mesma liberdade de criação do que o embate oral. Lembre-se que Atenas foi o berço da democracia, um sistema de governo que não existe sem a dialética, sem o debate.

Relato como exemplo algo que aconteceu comigo. Como amante da arte da fotografia, dispus-me a debater com um grupo de fotógrafos por meio de um fórum online. O assunto era sobre os elementos que definem uma boa fotografia, uma imagem de qualidade como muitas que foram produzidas por Cartier-Bresson, Sebastião Salgado e outros mestres. Como meus colegas insistiam em esmiuçar o processo de “análise” de uma obra sugeri suspender por um momento esse desenvolvimento para antes chegarmos juntos a uma definição de “análise” e discutirmos se esse seria de fato o instrumento mais apropriado para apreciar uma obra original. A certa altura, um dos participantes irritou-se e colou uma definição do dicionário Aurélio de “análise” e interrompeu o debate impondo um caráter objetivo a conversa que na minha modesta opinião não trouxe nada de novo para o tema.

Sócrates temia que a produção do conhecimento fosse substituída pelas convencionalidades e ficasse encarcerada no conceito. Uma vez que se aceita por convenção que o conceito está definido, não se volta mais a ele, não há mais disposição para isso. Os livros instituem o conceito, estabelecem um sistema no qual os pensadores e pesquisadores se subordinam. O problema é que o saber não é desenvolvido, apenas ocorre a expansão do sistema e fica cada vez mais difícil o surgimento de um conhecimento verdadeiramente original.

Se isso ocorre com os livros, o que se pode imaginar da Internet que presa pela brevidade e facilidade de leitura. Longe de querer jogar a rede global no limbo, uma discussão mais centrada nas características do conteúdo digital, naquilo que ele é e não sobre como ele deveria ser, abandonando também as divagações históricas sobre paradigmas, acredito que isso sim nos ajudaria caminhar com mais efetividade nesse debate.

O Banheiro do Papa


O mundo como produto da capacidade racional de alinhar a boa vontade e o projeto dos mártires está longe de ser realizável.

Por Luciano Rodrigues

O Banheiro do Papa é um filme produzido em 2007. Foi codirigido por César Charlone, uruguaio erradicado no Brasil, assinou também a direção de fotografia de Cidade de Deus. A história se passa na cidade de Melo, fronteira entre Brasil e Uruguai. A população está agitada devido a visita próxima do Papa. O comércio local está animado visto que muita gente vai visitar a cidade e isso é uma oportunidade para venda de comida, bebida, bandeirinhas e penduricalhos. Um dos moradores tem a ideia de construir um banheiro já que os visitantes em algum momento terão que se aliviar. O filme se passa mostrando todas as dificuldades e conflitos que o personagem precisa superar para levar seu plano a cabo. (Spoiler) No final dá tudo errado. Na última hora, o trajeto do Papa é alterado e a comunidade toda fica no prejuízo. Uma população que já estava em estado de penúria, recebe o golpe de misericórdia.

O episódio se repete, porém agora na vida real. Os noticiários comentam o drama dos comerciantes de Guaratiba, no Rio de Janeiro. Há quem contraiu dívidas de R$60.000,00 em mercadorias, e curiosamente um marmoreiro repete o mesmo fiasco apresentado no filme de Charlone empenhando R$10.000,00 para construir 12 banheiros ao lado da sua casa localizada em frente ao Campus Fidei, local que abrigaria um dos eventos da Jornada Mundial da Juventude. A realização foi transferida para Copacabana e a população ficou a ver navios.

No Domingo, enquanto a mídia exaltava os ideais de solidariedade para com os pobres e exibia os gestos de simplicidade do Papa, eu lia uma entrevista da presidente Dilma em que ela discutia a fórmula do crescimento econômico baseado no mercado consumidor.

Em outras palavras, todos podem imaginar o quanto quiser, sonhar todos os dias com um mundo mais justo e igual, construir castelos com o cimento das ideologias, desde que não abandonem o celeiro onde moram, não abram mão do consumo. Somos consumidores, e se deixarmos de consumir, o país quebra, essa é uma verdade inexorável.

O Papa critica a concepção funcionalista da religião que a transforma numa ONG, mas uma condição diferente exigira uma comunhão de comportamento tal que sobraria pouco espaço para a subjetividade e a religião estaria presente na organização da vida de forma orgânica. Isso me faz lembrar os países dos aiatolás.

Há uma diferença entre realidade e existência. A realidade, construímos a partir de nossos costumes, crenças, convencionalidades e pelo modo como tocamos a vida, já a existência é independente de nós e por isso é implacável para com as vontades humanas. A realidade da Jornada Mundial da Juventude é o convívio entre jovens de diversas nações para a renovação e fortalecimento da fé bem como para a reafirmação do programa do novo pontificado. Quanto a existência, ela mostra a dureza da vida que impõe as variáveis econômicas que, se não são determinantes, ao menos se colocam como fardos bem pesados que dificultam, e muito, a realização dos planos elevados que saíram da comiseração compartilhada de milhares de almas bem intencionadas. Na existência, a religião é uma instituição que possui uma função específica na vida organizada para colaboração com a coesão do tecido social.

No final das contas, o jogo da vida precisa contar com todos esses agentes: o Papa, seus fiéis e simpatizantes, a mídia, os morros repletos de TVs de plasma, o comerciante “oportunista”, os políticos com suas politicagens, a marcha das vadias, tudo isso provoca um bate e rebate, um puxa e repuxa que nos ajuda a pensar nossa realidade e sobreviver ao caos da existência.